Pedro Coelho é Defensor Público Federal
Professor da EBEJI
EBEJ
Prezados,
O texto de hoje versa sobre alguns aspectos envolvendo a Lei Maria da Penha, especialmente com algumas reflexões e conclusões para facilitar a compreensão e identificação da legitimidade para ser considerado sujeito passivo dos crimes que receberam um “novo contorno” com a Lei 11.340/2006.
Para o referido objetivo, interessante se faz, de maneira bastante apertada, assimilarmos o contexto e razões que motivaram a edição da referida lei. Apesar de ser signatário de alguns Tratados, Convenções e compromissos internacionais prevendo a eliminar todas as formas de discriminação contra as mulheres, bem como conferir efetiva e especial proteção às pessoas do gênero feminino, o Estado brasileiro “precisou” de uma repreensão internacional em que se escancarou o seu desrespeito em relação a tais obrigações, para que se modificasse o ordenamento jurídico interno.
Maria da Penha Maia Fernandes foi agredida em 1983 enquanto dormia, tendo sido alvejada por disparo de espingarda executado pelo seu então marido, resultando em invalidez física (tetraplegia), tendo ainda sofrido outras agressões. Nesse caminhar, o autor dos delitos fora denunciado em 1984, mas, pela lentidão do sistema de persecução criminal, somente fora preso em 2002. Diante dessa evidente violação de direitos humanos, os fatos foram levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tendo resultado no Relatório 54/2001[1]. A partir dele, 5 anos mais tarde, adveio a Lei 11.340/2006 visando a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Com essa contextualização, fica (mais) fácil asseverarmos, com arrimo na doutrina e jurisprudência esmagadoramente majoritárias, que a Lei Maria da Penha criou um microssistema protetivo específico para as mulheres. Dito de outro modo, apesar de não ser suficiente se revelar a vítima como mulher para legitimar a aplicação da referida legislação, indubitavelmente se trata de lei voltada exclusivamente para as mulheres na condição de vítima de agressões das mais variadas modalidades (como sujeito passivo).
Ora, se em relação ao sujeito passivo da violência doméstica e familiar se exige a qualidade especial de mulher, mas isso não é suficiente para garantir a legítima aplicação da Lei Maria da Penha, quais outros requisitos precisam estar presentes?
Analisando o artigo 5º da lei[2], podemos apontar, genericamente, outros dois requisitos para a aplicação da Lei 11.340/2006, quais sejam, (a) violência baseada em relação íntima de afeto, motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade, além de (b) a agressão de ter se dado em ambiente familiar ou da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas.
Nesse contexto, vale colacionar algumas considerações da doutrina especializada:
“Como o legislador fez referência ao espaço de convívio permanece de pessoas, não basta que autor e ofendido esteja em um espaço doméstico, onde, por exemplo, haja relação doméstica entre terceiros. Para além disso, também se faz necessário que ambos pertençam a essa mesma unidade doméstica, ainda que esporadicamente agregadas. (…) Se uma mulher decoradora de ambientes sofrer uma agressão por ocasião da realização de um trabalho em determinada residência, não há falar em aplicação da Lei Maria da Penha, porquanto a vítima não faz parte da relação doméstica. Agora, se esta mesma violência no âmbito da unidade doméstica for cometida em detrimento de uma mulher sob o regime de tutela ou curatela, forçoso concluir que se trata de violência doméstica e familiar contra a mulher[3].”
Pedro, a COABITAÇÃO é requisito indispensável para a aplicação da Lei Maria da Penha?
Não! Como adiantamos acima, quando afirmamos ser imprescindível que a violência baseada em relação íntima de afeto, motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade para a sua aplicação, não se afirmou de maneira peremptória que a coabitação seria demandada. As impressões inicialmente identificadas nessa linha vieram a ser confirmadas em diversos julgados dos Tribunais Superiores.
Conclui-se que, desde que restem presentes o requisito de violência baseada em relação íntima de afeto, motivação de gênero ou situação de vulnerabilidade, não se demanda a coabitação, não obstante se exigir, naturalmente, que a vítima seja do gênero feminino e que a agressão tenha se dado em ambiente doméstico.
É que o objeto da Lei Maria da Penha pode ser identificado como a tutela da mulher em situação de vulnerabilidade perante qualquer familiar ou pessoa de sua convivência (sujeito ativo pode ser tanto homens como mulheres)! Exemplificativamente, vale colacionar julgado que entendeu aplicável a Lei 11.340/2006 em face de irmão que agrediu irmã, ainda que não mais residissem sob o mesmo teto:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE AMEAÇA PRATICADO CONTRA IRMÃ DO RÉU. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. ART. 5.º, INCISO II, DA LEI N.º 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DE BRASÍLIA/DF. RECURSO PROVIDO.
1. A Lei n.º 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, tem o intuito de proteger a mulher da violência doméstica e familiar que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, sendo que o crime deve ser cometido no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto. 2. Na espécie, apurou-se que o Réu foi à casa da vítima para ameaçá-la, ocasião em que provocou danos em seu carro ao atirar pedras. Após, foi constatado o envio rotineiro de mensagens pelo telefone celular com o claro intuito de intimidá-la e forçá-la a abrir mão “do controle financeiro da pensão recebida pela mãe” de ambos. 3. Nesse contexto, inarredável concluir pela incidência da Lei n.º 11.343/06, tendo em vista o sofrimento psicológico em tese sofrido por mulher em âmbito familiar, nos termos expressos do art. 5.º, inciso II, da mencionada legislação. 4. “Para a configuração de violência doméstica, basta que estejam presentes as hipóteses previstas no artigo 5º da Lei 11.343/2006 (Lei Maria da Penha), dentre as quais não se encontra a necessidade de coabitação entre autor e vítima.” (HC 115.857/MG, 6.ª Turma, Rel. Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG), DJe de 02/02/2009.) 5. Recurso provido para determinar que Juiz de Direito da 3.ª Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Brasília/DF prossiga no julgamento da causa. (REsp 1239850/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 16/02/2012, DJe 05/03/2012).
Lembro que a Lei 11.340/2006 é muito importante, sobretudo (mas não exclusivamente) para concursos em âmbito estadual, com reflexos no direito material e processual! Espero que tenham gostado! Vamos em frente!
Grande abraço,
Pedro Coelho, Defensor Público Federal
EBEJI
[1] Em 2001 a Comissão emitiu o relatório nº 54/2001 – responsabilizando o Brasil por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres. Entenderam que a violação seguia um padrão discriminatório em razão da violência doméstica contra mulheres no Brasil. Dessa forma, foram feitas recomendações ao Estado Brasileiro, a saber:
- Completar rápida e efetivamente o processamento penal do responsável pela agressão;
- Realizar uma investigação séria, imparcial e exaustiva para apurar as irregularidades e atrasos injustificados que não permitiram o processamento rápido e efetivo do responsável;
- Adotar, sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o agressor, medidas necessárias para que o Brasil assegure à vítima uma reparação simbólica e material pelas violações;
- Prosseguir e intensificar o processo de reforma para evitar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica;
- Medidas de capacitação/sensibilização dos funcionários judiciais/policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica;
- Simplificar os procedimentos judiciais penais;
- O estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares;
- Multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários, bem como prestar apoio ao MP na preparação de seus informes judiciais;
- Incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará;
- Apresentar à Comissão, dentro do prazo de 60 dias – contados da transmissão do documento ao Estado, um relatório sobre o cumprimento destas recomendações para os efeitos previstos no artigo 51(1) da Convenção Americana;
O Caso Maria da Penha foi o precursor na condenação de um Estado devido à violência doméstica, no âmbito de proteção dos direitos humanos. (https://michellysantos.jusbrasil.com.br/artigos/113643376/resumo-do-caso-maria-da-penha-sob-a-otica-dos-direitos-humanos?ref=topic_feed).
[2] Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015)
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Editora Jus Podivm, 2ª edição, 2014, pág. 889.
acompanhe
Google Youtube Twitter Facebook