Hitala Mayara é Advogada da União
e Coach EBEJI PGE
EBEJI
Vamos supor a seguinte situação: João, sentindo fortes dores abdominais, procura hospital privado conveniado do SUS, onde é submetido a cirurgia. Dias após a cirurgia, contudo, ainda apresentando fortes dores, realiza novos exames e descobre que um instrumento cirúrgico foi “esquecido” em seu corpo, em hipótese de evidente erro médico.
Nessa hipótese, considerando a organização do Sistema Único de Saúde, será a União responsável civilmente pelo erro médico ocorrido em hospital conveniado? Em outras palavras, será possível transplantar também para esses casos o entendimento de que, sendo o SUS organizado segundo um sistema descentralizado e constituindo a saúde um dever do Estado, qualquer dos entes públicos poderá ser responsabilizado por medidas a ele referentes?
Durante muito tempo o STJ manteve o entendimento jurisprudencial de que, nesses casos, a União seria parte ilegítima para figurar no polo passivo, já que não é ela diretamente responsável pelo credenciamento de hospitais ao SUS, competência essa legalmente atribuída aos municípios.
Contudo, ao julgar o REsp 1388822, a Primeira Turma do STJ, por unanimidade, decidiu por modificar sua jurisprudência, passando a considerar a União solidariamente responsável também nesses casos, aplicando por analogia o entendimento já consolidado sobre a responsabilidade dos entes públicos em ações envolvendo o fornecimento de medicamentos.
Segundo consignado no voto do Ministro Benedito Gonçalves, relator do caso, a razão da mudança estaria respaldada no fato de o direito à saúde ser um direito constitucional atribuído a todos, de responsabilidade do Poder Público, sendo os entes públicos solidariamente responsáveis por ações a ele relacionadas.
Por conta disso, tal como ocorre em ações relacionadas a medicamentos, caberia ao autor escolher contra qual/quais entes ajuizar a ação indenizatória por responsabilidade civil, por haver uma solidariedade entre eles.
O julgado foi assim ementado, segundo notícia divulgada no Informativo nº 543:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL POR ERRO MÉDICO. HOSPITAL PRIVADO. ATENDIMENTO CUSTEADO PELO SUS. RESPONSABILIDADE MUNICIPAL. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO.
1. Considerando que o funcionamento do SUS é de responsabilidade solidária da União, do Estados e dos Municípios, é de se concluir que qualquer um destes entes tem legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de quaisquer demandas que envolvam tal sistema, inclusive as relacionadas à indenizatória por erro médico ocorrido em hospitais privados conveniados.
2. É entendimento desta Corte que, em sede de recurso especial, não se admite a revisão de danos morais, ante o óbice contido na Súmula 7/STJ, salvo se o valor fixado for exorbitante ou irrisório, excepcionalidade essa não verificada nos presentes autos.
3. Nas condenações indenizatórias posteriores à entrada em vigor do Código Civil de 2002, deve-se aplicar a taxa Selic, que é composta de juros moratórios e de correção monetária. Precedentes: EDcl no REsp 1.300.187/MS, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 26/03/2014; EDcl nos EDcl no AgRg no AREsp 245.218/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, DJe 25/11/2013; REsp 1.279.173/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 09/04/2013; EDcl no AgRg no AREsp 109.928/SP, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 01/04/2013; EDcl no REsp 1210778/SC, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 19/12/2011; AgRg no REsp 1.233.030/PR, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 14/04/2011.
4. Recurso especial não provido.
(REsp 1388822/RN, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/06/2014, DJe 01/07/2014)
Considerando, contudo, que a Primeira Turma do STJ estava inaugurando uma posição diferente sobre o tema, então, a União Federal interpôs embargos de divergência, buscando a manutenção da jurisprudência já consolidada no âmbito do Tribunal.
Recentemente, então, a Primeira Seção do STJ realizou o julgamento dos embargos, provendo-os e, com isso, restaurando a posição anteriormente predominante, no sentido de ser a União nitidamente parte ilegítima em tais casos.
Essa foi a ementa do julgado:
PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO OCORRIDO EM HOSPITAL PRIVADO CREDENCIADO PELO SUS. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. COMPETÊNCIA ATRIBUÍDA AO MUNICÍPIO PARA CELEBRAR E CONTROLAR A EXECUÇÃO DE CONTRATOS E CONVÊNIOS COM ENTIDADES PRIVADAS PRESTADORAS DO SERVIÇO DE SAÚDE.
1. A União Federal não é parte legítima para figurar no polo passivo de ação ajuizada para o ressarcimento de danos decorrentes de erro médico praticado em hospital privado credenciado pelo SUS. Isso porque, de acordo com o art. 18, inciso X, da Lei n. 8.080/90, compete ao município celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução. Precedentes: AgRg no CC 109.549/MT, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 30/06/2010; REsp 992.265/RS, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 05/08/2009; REsp 1.162.669/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 06/04/2010.
2. Não se deve confundir a obrigação solidária dos entes federativos em assegurar o direito à saúde e garantir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, com a responsabilidade civil do Estado pelos danos causados a terceiros. Nessa última, o interessado busca uma reparação econômica pelos prejuízos sofridos, de modo que a obrigação de indenizar sujeita-se à comprovação da conduta, do dano e do respectivo nexo de causalidade entre eles.
3. No caso, não há qualquer elemento que autorize a responsabilização da União Federal, seja porque a conduta não foi por ela praticada, seja em razão da impossibilidade de aferir-se a existência de culpa in eligendo ou culpa in vigilando na espécie, porquanto cumpre à direção municipal realizar o credenciamento, controlar e fiscalizar as entidades privadas prestadoras de serviços de saúde no âmbito do SUS.
4. Embargos de divergência a que se dá provimento.
(EREsp 1388822/RN, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13/05/2015, DJe 03/06/2015)
Para tanto, a primeira observação lançada pelo Ministro Og Fernandes, relator do caso, foi a de não ser possível equiparar as ações em que são pleiteados medicamentos ou tratamentos médicos às ações indenizatórias, que buscam uma prestação pecuniária com fundamento na responsabilidade civil.
Aliás, é justo com base nessa distinção que não se pode aplicar, sob a mesma lógica, a previsão do art. 198 da CF ao caso, o qual prevê a saúde como direito de todos e dever do Estado, considerando que os pedidos são diversos e a relação jurídica que os fundamenta também.
Em se tratando de ação indenizatória fundada em responsabilidade civil, portanto, é de ser aplicável o art. 37, §6º, da CF, o qual necessariamente requer, para sua aplicação, a comprovação do nexo causal entre a conduta do agente público e o dano causado.
Partindo para a análise do nexo, portanto, o STJ trouxe a exame a previsão do art. 18, X, da Lei 8.080/90, que confere aos municípios a prerrogativa de celebrar convênios com instituições privadas de saúde, cabendo-lhes, ainda, o controle e a fiscalização desses entes:
Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:
……………………………………………………………………………..
X – observado o disposto no art. 26 desta Lei, celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução;
Assim, se aos Municípios compete não só o credenciamento, como o controle e a vigilância dessas pessoas jurídicas de direito privado, não há como se falar em qualquer nexo causal entre a conduta praticada por seus agentes e a União Federal, até mesmo porque, na hipótese, não há como se falar em qualquer tipo de culpa, seja in eligendo, seja in vigilando.
Rompido o nexo, portanto, está afastada a responsabilidade da União na hipótese.
Por representar uma mudança recentíssima e a superação de uma posição contrária à União que se formou em uma das Turmas do STJ, o julgado acima é extremamente relevante nos concursos para a Advocacia da União, hipótese em que a menção aos artigos 37, §6º, da CF, e 18, X, da Lei 8.080/90 é obrigatória.
Bons estudos, Hitala Mayara.
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