Olá pessoal, tudo certo?

Hoje vamos trabalhar com um tema particularmente muito relevante para quem deseja fazer a prova da Defensoria Pública da União, já que se trata de uma das maiores bandeiras e batalhas jurídicas institucionais travada há algum tempo pelos membros da carreira.

Faremos um recorte bastante objetivo de um caso específico que acredito ser possível de cobrança no próximo certame, mas é relevante apontar que o pano de fundo do tema é sobre a possibilidade ou não da Justiça Militar ser competente para julgar civis. Como já falamos em textos anteriores, o ordenamento pátrio positivado trabalha com a ideia de crimes próprios (cometido apenas por militares) e impróprios (teoricamente passíveis de serem praticados por civis).

Acerca dessa possibilidade “ampla” de julgamento de civis em face de crimes militares impróprios pende do STF uma Ação de Descumprimento Fundamental (ADPF 289) aguardando deliberação da Suprema Corte há mais de 3 (três) anos, sem resposta definitiva.

É possível, porém, afirmar que, até o momento, majoritariamente o entendimento da jurisprudência vem caminhando pela compatibilidade da competência da Justiça Castrense para o julgamento de civis, nos casos de delitos militares impróprios.

Como afirmado acima, o ponto e foco fundamental do presente texto é um pouco mais restrito do que a genérica competência da justiça militar para julgamento de civis. O fato que desejo abordar é que, sobretudo após os anos de 2009/2010, vem aumentando significativamente o número de utilizações das Forças Armadas em funções anômalas (nomenclatura que eu prefiro) ou atribuições subsidiárias (termo legalmente utilizado).

Nesse contexto, vale salientar que reza a Lei Complementar 97/1999, ampliando a possibilidade de instituições militares atuarem em funções atípicas, anômalas ou subsidiárias, “em auxílio do poder civil”.

Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação: § 4o Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3o deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.      (Incluído pela Lei Complementar nº 117, de 2004)

Na cidade do Rio de Janeiro, há profícuos exemplos desses acontecimentos. Lembremos da autorização da “cooperação” do Exército no processo de ocupação do Complexo do Alemão, com o fito de contribuir no “processo de enfrentamento ao tráfico de drogas até então dominante na região”. Houve, pois, a atuação de militares federais, em alguns pontos do local, policiamento ostensivo (atividade atípica)[1].

Diante desse cenário, dentre várias situações inusitadas geradas, uma especificamente nos chamou bastante a atenção, por envolver a celeuma da competência de julgamento de civis por crimes militares. Explico. Os Tribunais passaram a se deparar, com alguma frequência, com a situação em que militares das Forças Armadas eram sujeitos passivos de crimes de desacato[2] e, ato contínuo, a se questionar sobre a competência para o julgamento dos referidos crimes! Em última análise, passou-se a indagar se em tal situação teríamos a devida adequação ao previsto no artigo 9º do CPM:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

  1. d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

A grande questão sobre esse imbróglio era saber se a atuação subsidiária/anômala estaria ou não dentro do contexto de contra militar na função de natureza militar”. Para alguns, a Constituição Federal e tampouco a legislação traçam balizas de separação e diferenciação de tratamento para as funções primárias e subsidiárias. Se se trata de função legalmente atribuída, não há razão para fazer a distinção de tratamento. Segundo esse raciocínio, é possível extrair inclusive embasamento e arrimo legal para tanto, a partir do parágrafo 7, do artigo 15 da LC 97, o qual aponta ser a atuação do militar nos casos previstos nos arts. 13, 14, 15, 16-A, nos incisos IV e V do art. 17, no inciso III do art. 17-A, nos incisos VI e VII do art. 18, nas atividades de defesa civil a que se refere o art. 16 desta Lei Complementar e no inciso XIV do art. 23 da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), é considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal.”.

Bacana, Pedro! Mas esse entendimento foi agasalhado pelo Supremo Tribunal Federal?

Apesar da força e autoridade dos argumentos desenvolvidos pelos adeptos da posição adrede apontada, entendo que ela não se revela como a mais correta e adequada. Vamos entender “o outro lado da moeda”.

A divergência foi apontada a partir de dois aspectos basilares. Em primeiro lugar, pontuou-se que as atividades “subsidiárias” por parte dos militares, como o exercício ostensivo em favelas em tempo de paz, não é serviço militar, mas sim uma atividade de segurança pública, desqualificando a incidência do artigo 9º do CPM (como bem asseverou o Ministro Celso de Mello, é “o caráter anômalo da jurisdição penal militar sobre civis”), afinal a índole e essência dessa atividade seria eminentemente civil, já que envolveria típica natureza de segurança pública.

De acordo com precedente da 2ª Turma, datado de 2013, o Ministro Celso de Mello registrou que “refoge à competência penal da Justiça Militar da União processar e julgar civis, em tempo de paz, por delitos supostamente cometidos por estes em ambiente estranho ao da Administração Militar e alegadamente praticados contra militar das Forças Armadas no contexto do processo de ocupação e pacificação das Comunidades localizadas nos morros cariocas, pois a função de policiamento ostensivo traduz típica atividade de segurança pública. Precedentes. (…). A Constituição do Brasil, ao proclamar o regime das liberdades públicas – que representa expressiva limitação aos poderes do Estado –, consagrou, de modo explícito, o dogma fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. (HC 112936, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 05/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-093 DIVULG 16-05-2013 PUBLIC 17-05-2013 RTJ VOL-00224-01 PP-00533).

A ideia que prevaleceu no julgamento acima declinado foi a de que função militar típica é o exercício das obrigações inerentes ao cargo militar, devendo-se, no entanto, restringir a compreensão para as atividades ligadas às constitucionalmente destinadas às Instituições Militares, com fulcro no artigo 23 do Estatuto dos Militares, ao passo que a função de policiamento ostensivo é vinculada à segurança pública, atipicamente desempenhada – no caso – por militares das Forças Armadas.

Ora, se o militar das forças armadas está exercendo função atípica de policiamento ostensivo (de caráter eminentemente civil), não está em atividade militar. Se for ofendido em razão desse exercício ou no seu cumprimento, obviamente o crime que ocorre é comum nos termos do art. 331 do CPB (partindo do pressuposto da sua aplicabilidade) e não do art. 299 do CPM, razão pela qual afastada estaria a competência da Justiça Castrense.

Essa posição vem ao encontro da tese cada vez mais defendida pela Defensoria Pública da União, em reforço à tendência da jurisprudência das Cortes Internacionais, de afastar a incidência da jurisdição militar sobre civis[3], daí a importância de sua defesa em provas subjetivas e oral!

Apesar dessa última sinalização do Supremo em relação à competência da Justiça Comum nos casos de delitos praticados quando envolver atividade anômala ou subsidiária por parte dos militares, o fato é que devemos aguardar a deliberação da Corte acerca da ADPF 289 e/ou ao Habeas Corpus 112.848, impetrado pela DPU, afetado ao plenário, que se encontra concluso ao Relator (Min. Lewandowski) desde 16/09/2016.

Nesses casos, o que se espera é o afastamento da possibilidade de civis serem julgados por Cortes Castrenses. Apesar de ser essa a minha posição, desejo e expectativa, acredito que no atual cenário seja bem complicado que efetivamente ocorra. De toda forma, caso assim o seja, estaríamos mais próximos de alguns importantes precedentes da CIDH.

Nesse sentido, pode-se destacar o emblemático caso Castillo Peruzzi e outros vs. Peru. Aqui, a CIDH afirmou claramente que a jurisdição militar não seria a natural para ser aplicada a civis, uma vez que eles carecem de funções militares, afetando em última análise o princípio do juiz natural. Vejamos:

“La Corte advierte que la jurisdicción militar ha sido establecida por diversas legislaciones con el fin de mantener el orden y la disciplina dentro de las fuerzas armadas. (…). El traslado de competencias de la justicia común a la justicia militar y el consiguiente procesamiento de civiles por el delito de traición a la pátria en este fuero, supone excluir al juez natural para el conocimiento de estas causas. En efecto, la jurisdicción militar no es la naturalmente aplicable a civiles que carecen de funciones militares y que por ello no pueden incurrir en conductas contrarias a deberes funcionales de este carácter[4].

Assunto com muitos detalhes, não é? Eu sei! Mas vamos tentar sistematizar algumas conclusões para facilitar a compreensão, ok?

Resumo e conclusões relevantes:

(a)  Militares em funções atípicas ou subsidiárias – Apesar de precedentes em sentido diverso, as últimas manifestações do STF sobre o tema vêm a agasalhar a tese defendida pela DPU no sentido de que, em casos tais, não há concretamente “atividade militar” apta a justificar a competência da Justiça Especializada. Assim, em casos tais, os civis deverão ser julgados por crime comum, na Justiça Comum!

(b) Justiça Militar da União pode julgar civil? Como salientado, houve o ajuizamento de uma ADPF e pende no Plenário do STF um HC visando a afastar integralmente essa possibilidade. Pode-se dizer que essa é uma tendência nas Cortes Internacionais, com uma série de emblemáticos precedentes a indicar que a vocação fundamental da justiça castrense é o julgamento de militares, sendo uma aberração e violação ao juiz natural a submissão de civis a essa jurisdição especializada. Contudo, atualmente, vem prevalecendo a possibilidade, sendo necessário aguardar eventual modificação de posicionamento da Suprema Corte.

(c) Tema complicado? É um tema que tangencia uma série de matérias, inclusive o direito internacional e humano, sendo uma excelente questão para ser cobrada em provas subjetivas e oral. Caso venha a ser enfrentado em provas objetivas, o mais provável é que exijam aspectos relacionados às funções subsidiárias ou atípicas, descritas no item “a”.

Espero que tenham entendido e gostado!

Vamos em frente!

Pedro Coelho – Defensor Público Federal

https://www.facebook.com/Profpedrocoelho/

[1] A utilização das Forças Armadas e também da Polícia Federal nesse processo (que passou a ser noticiado pela mídia como “pacificação do Complexo do Alemão”) se justificou diante da insuficiência do contingente de homens dos efetivos da Polícia Militar e Civil do estado do Rio de Janeiro.

[2] Apesar da tese da inconvencionalidade e do precedente recente do STF sobre a incompatibilidade do artigo 331 do CPB com a CADH (tema por nós já comentados aqui no blog), importa ressaltar que ainda prevalece nos Tribunais Superiores a indicação de higidez do referido dispositivo.

[3] Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g.. – Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“Caso Palamara Iribarne vs. Chile”, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (…)” (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, “Puntos Resolutivos”).

[4] https://static1.squarespace.com/static/55eb3459e4b021abebfec2bd/t/57b1de69d1758e31faf0589f/1471274602134/Corte+IDH%2C+Caso+Castillo+Petruzzi+vs.+Peru.pdf